Se acender velas no Dia de Finados mitiga os pecados de alguém, confesso sem pudor: sou quase um santo. Ao longo dos anos, acumulei tantas chamas acesas que, se contassem como indulgência, talvez já estivesse com um pé no céu. Lembro-me com carinho — e uma pontada de saudade — do meu pai, que também já se encontra mais perto de Deus do que de nós. Todo dia dois de novembro, como um ritual sagrado, ele separava no mínimo dez caixas de velas “Luz da Vida”.Era sempre na “boca da noite” que começava a convocação: chamava, um a um, os nomes dos que já haviam partido.
Obediente e intrépido como sempre fui, posicionava-me do outro lado da estrada, encarregado de espraiar as velas pelo imenso tronco da mangueira caída. À medida que meu pai pronunciava o nome de mais um finado, eu acendia uma a uma as velas, como se cada chama fosse um fio de luz entre este mundo e o outro. Era tempo de lamparina, de silêncio profundo, de interior. E meu pai, sentado em frente à minúscula quitanda — que naquele dia se tornava altar, desfalcada em prol das almas — comandava com voz firme:
— Acende aí pro fulano, outra pra cicrano e mais uma pro beltrano!
Ilustração de IA, a partir de uma foto real do meu pai, sentado à frente da pequena venda no interior
Eram tantos os nomes, tantas memórias, que nem mesmo o frondoso pé de manga, já tombado e morto, comportava tantas velas. Tivemos que improvisar: as pontas das estacas da cerca de arame ao longo do beco viraram suportes para a luz dos que se foram.
Mas havia um limite para minha coragem. Ir além do que a vista o alcançava, balbuciando o nome de mais um homenageado, exigia bravura que eu ainda não possuía. Tinha medo — medo real — de que alguma voz sepulcral, vinda lá do meio do beco, sussurrasse:
— Acende uma pra mim também...
Os Dias de Finados, vividos no interior, sempre me ensinaram a respeitar os mortos. Foram aulas silenciosas, mas profundas — lições que vinham não só das velas acesas e das preces murmuradas, mas também das memórias que o tempo não apaga. Ficaram marcadas em minha mente, como uma frase escrita em letras garrafais nos antigos carros do IML de Teresina: “OS MORTOS ENSINAM AOS VIVOS”. Lembranças que permanecem acesas, ensinando que honrar os que partiram é também uma forma de valorizar os que ainda estão aqui. E, quem sabe, respeitando os finados, aprendamos a conviver melhor com os vivos
É por isso que , como faço todos os anos, mantenho viva a tradição. Acendo velas para os que já se foram, não por medo de que me puxem o pé, mas por gratidão. Faço de bom grado. Porque cada chama é memória, é afeto, é ponte entre tempos que não voltam — mas que ainda iluminam.

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